domingo, 18 de abril de 2010

O desafio do Estado laico e a religião perante a Constituição

O Estado brasileiro se declara isento de religião, laico. A dificuldade de cumprir esse ditame constitucional remonta a uma discussão profunda sobre as bases do Direito. Inicialmente, atenhamo-nos então às funções do Estado, que basicamente se limitam ao que define o artigo terceiro da Constituição:

I. Construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II. Garantir o desenvolvimento nacional;

III. Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais

IV. Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Pelo inciso IV, em “quaisquer outras formas de discriminação”, inclui-se a religiosa, chegando à conclusão que o princípio da igualdade (artigo quinto, “caput”) aplica-se à religião. Note-se que não há qualquer disposição no sentido de promover determinada religião ou mesmo a religiosidade, mas sim uma orientação à proteção, tal qual se protege a liberdade de expressão. A ideologia envolvida nessa concepção estatal é a do Estado Democrático de Direito que inclui a religião naquele âmbito de proteção do indivíduo frente ao Estado, ou seja, como um direito individual sobre o qual o Estado não pode agir de maneira incisiva, impositiva, embora seja seu dever fazê-lo com o fim e nos limites necessários à sua garantia. Isso é exatamente o que expressa o artigo quinto em seu inciso VI:

“é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

Avança na questão a Lei Maior no inciso seguinte:

“é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”.

Dessa forma, o que se visa é proteger a religiosidade enquanto direito, enquanto prerrogativa do sujeito. O Poder Público não pode apartar absolutamente o sujeito do contato com sua religiosidade, suas práticas e seus cultos.

Por fim, o inciso VIII:

“ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa (...), salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.

Aqui o Ordenamento afirma a sua superioridade sobre a religião. A religião não é desculpa para qualquer conduta, ou seja, o indivíduo não pode agir contrariamente ao Estado mesmo que esteja amparado por sua crença religiosa. É nada mais do que a afirmação de que o Direito se sobrepõe à moral, ou pelo menos, tem um caráter mais coercitivo.

Desse modo, primeiramente temos que reconhecer a religião como, senão o principal, um dos principais componentes da moral. Moral aqui entendida como em seu sentido subjetivo, individual, como instrumento pessoal valorativo de condutas. O aspecto religioso envolve as crenças mais fundamentais (e comumente menos racionais, mais dogmáticas e de difícil debate) de um sujeito: sua concepção de mundo, o sentido da vida, o aceitável e o reprovável das condutas humanas, etc.

A crença em algo transcendental importa em uma série de imposições, restrições ou sugestões quanto ao modo de agir do sujeito, o que reflete sua importância na configuração moral. Orientando a moral, é de notória relevância na definição da escala de valores que o indivíduo adota, inclusive, que a sociedade adota. Ora, em um Estado laico, a religião só pode atuar sobre o Estado (e, na nossa perspectiva, sobre o Direito) através da moral. Daí observam-se duas possibilidades: numa consideração da moral de cada indivíduo, ela age diretamente no Ordenamento Jurídico; e indiretamente quando consideramos a moral social (não considerada aqui como uma moral única, mas apenas como a soma das morais individuais) no campo consuetudinário.

No primeiro caso, tratamos daqueles sujeitos que têm uma função que lhe atribui poder frente ao ordenamento: os parlamentares, os chefes de executivo, os Ministros, esse tipo de gente... gente importante, enfim. Atualmente é aceito com razoável consenso doutrinário que o Direito não se pode estabelecer nem se concretizar desprovido de valores, como bem demonstra a teoria tríplice da norma jurídica de Miguel Reale (a norma é o fato valorado). Ao tomarem suas decisões, esses sujeitos estarão se valendo, obrigatoriamente de valores, ou seja, de moral, ou seja, de religião! Por isso é importante buscar-se como afirmava Kant, uma separação entre a moral e o Direito. Devem-se buscar normas que possibilitem a boa convivência e a liberdade entre os sujeitos, tendo em vista que essa é a razão social do Estado.

Já no segundo caso, abordamos a questão da influência religiosa a partir da práxis, do pragmatismo, do cotidiano. A empiria social se reflete de modo mais imediato no Direito através dos costumes, reconhecidos como fonte secundária do Direito. Assim, por exemplo, o Estado laico aceita que seus feriados tenham nomes de santo, bem como suas cidades, ou que haja um crucifixo na Câmara de Vereadores.

Se a Constituição pretendia criar um Estado que se abstém de intervenção religiosa, começou muito mal, pois em seu preâmbulo estampa que a mesma foi promulgada “sob a proteção de Deus”! Aqueles que promulgaram acreditavam em Deus, e em apenas um deles. Isso já exclui os politeístas e os ateus, além daqueles que consideram que o seu Deus não protege tal diploma.

Texto escrito pelo amigo Luan Melo do curso de direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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